segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

1000 rolos de papel higiênico e 1 sonho

José, um homem médio. Nem tão baixo nem tão alto. Nem tão feio nem tão bonito. Nem tão feliz e nem tão triste. Mas a indignação não era média e sim grande. Ele sentou na minha frente e muito simpático disse bom dia e logo falou que não sabia se eu poderia resolver seu problema, mas que pelo menos queria me contar o que o trazia ali. Então, ele tirou da bolsa um saco plástico grande com milhares daqueles rolinhos que vem dentro do papel higiênico, aqueles tubinhos de papelão e eram muitos mesmo. Eu achei muito engraçado no começo, mas é claro que não demonstrei, ai passei a achar que ele era meio louquinho. José me explicou que estava participando de uma promoção de uma marca de papel higiênico e que juntou mais de 100 rolos para participar e ter mais chances de ganhar. Que eu me lembre a promoção era assim: no tubo de papelão estaria escrito um código, aí você entrava no site da marca e cadastrava todos os códigos promocionais e assim passaria a concorrer a vários prêmios como eletro domésticos e até uma casa e um carro.


Então, José entrou na internet e passou a cadastrar os seus códigos, um a um, mas enquanto procurava os códigos para escrever no site via que muito deles estavam cortados ou muitos códigos eram repetidos. De 100 rolos que José tinha juntado, ao todo conseguiu cadastrar apenas 16 códigos. Indignado, José ligou para a marca e mandou vários emails e a marca disse que daria novos códigos para José poder se cadastrar. E José esperou, esperou e esperou. Até que mandaram para ele mais 10 códigos, entretanto José tinha direito a muito mais do que 10 códigos. Ligou para lá reclamando de novo e eles falaram que iam verificar o caso dele e depois lhe retornavam. A onze horas da noite do último dia em que poderiam se cadastrar José , ansioso conferiu seu email e nenhum código havia sido mandado a ele. Ele, mesmo muito triste, ficou esperançoso com os seus 26 códigos. No outro dia do sorteio, infelizmente José não ganhou nada, nem um liquidificador.

Desde o começo da conversa eu disse a José que naquele lugar nós não poderíamos fazer nada por ele e que ele deveria ir ao Núcleo de Defesa do Consumidor, mas mesmo assim ele quis passar mais de 20 minutos contando toda essa história. E a verdade é que ao mesmo tempo que eu achava que ele sofreu uma injustiça, eu achava tudo isso muito engraçado. Ele fez questão de me mostrar quase todos os rolos de papel com números repetidos ou cortados. Ele mostrou toda a conversa por email com as pessoas da empresa e incrível ele tinha anotado toda a conversa de telefone entre ele e a empresa, mesmo sabendo que a ligação era gravada.

Quando José foi embora com o endereço do outro Núcleo, eu fiquei achando que ele era um pouquinho louco. Mas está ai um louco que luta pelos seus direitos, um louco que tem um sonho e que seu sonho é ganhar uma casa através de uma promoção. E como esse sonho poderia ser realizado talvez através de rolos de papel higiênico ele fez de tudo para ganhar e no final se sentiu injustiçado por uma falsa propaganda, uma de muitas que existem por ai hoje em dia.

domingo, 12 de dezembro de 2010

A Fugitiva e o Cão


Na maioria das vezes, quando chega uma pessoa para ser atendida nós sabemos que ela é moradora de rua. Foi numa sexta que chegou Maria, mendiga, bem negra, dentes muito limpos, olhos cansados e assustados. Ela tinha mais ou menos uns 35 anos aparentemente. Parecia muito inteligente e esperta. Ela começou contando que estava fugindo de dois homens que a estavam perseguindo, que inclusive chegaram a pegar uma senha de atendimento lá onde ela estava, mas que percebendo que havia segurança lá, eles tinham ido embora.

Maria disse que trabalhava a 6 anos em uma empresa de eletrodomésticos que no morro (não me lembro qual), e que morava perto da fábrica em um barraco. Ela disse que todos os seus documentos estavam em posse da empresa, perguntei-a o porquê disso, mas ela enrolou e não me disse. E, de acordo com ela, a empresa usou um produto em seus documentos que apagava tudo o que estava escrito e que eles queria fazer uma “queima de arquivo”, como ela disse. E como ela começou a reclamar pelos documentos e, provavelmente, por outros motivos que ela não relatou, começaram a perseguir ela.

Certo dia, as 20 horas, Maria disse que foi ter uma reunião no sindicato e que depois voltou para casa. E quando era de madrugada ficou sabendo (não relatou como também) que umas pessoas estavam vindo matá-la. Então, ela fugiu de sua casa e de acordo com ela foi igual em filme americano: ela saiu de casa e um carro com dois bandidos e uma moto com um cara armado estavam no começo da rua vindo matá-la e ela saiu correndo sem pegar nada, sendo que essa perseguição durou até de manhã e ela só conseguiu despistá-los entrando em um Supermercado na Tijuca.

Maria me procurou, pois queria seus documentos, mas Maria nasceu em Salvador. Então, até tentarmos achar o cartório em que ela foi registrada (não entendo porque ainda não há uma tecnologia computadorizada para isso) demoraria uns 50 dias ou mais. Então, Maria desesperada queria me contar todo o ocorrido de novo, pois ela achava que fazendo isso ela poderia fazer com que fosse mais rápido tudo isso, entretanto eu disse para ela que seria a única coisa que nós poderíamos fazer para ele. Então, eu e ela ficamos tristes. E eu pensei em alguma solução fora dali, perguntei se ela tinha algum parente em Salvador, e ela disse que tem uma irmã, mas a única coisa que sabe dela é onde ela trabalha, que é no IBAMA cuidando de baleias na praia do Forte em Salvador, então eu procurei o telefone de la e falei para ela ligar para a irmã dela e pedir o endereço do cartório que tudo ficaria mais fácil, então ela poderia voltar aqui segunda feira que daríamos um jeito.


Maria ficou feliz. Pegou sua bolsa e a abriu para pegar algo, foi quando eu vi um cachorrinho dentro da bolsa dela. Primeiro achei que era um bichinho de pelúcia, e depois a vi que era muito real e então achei que era um cachorrinho morto. Era um poodle tão lindinho. Ai ela me disse que ele não estava morto não e que ela tinha recuperado ele essa semana, pois durante a fuga acabou deixando ele dentro do barraco sozinho. Ela pediu para um amigo seu ir buscar no morro com medo que fosse morta. Eu achei que o cachorrinho estava doente, ela disse que ele era assim mesmo, e o incrível é que ele estava dentro de uma mochila só com o focinho para fora, tão quietinho. Eu fui correndo pegar um pão que tinha lá para ele, mas ele não quis comer. Maria parecia tão cuidadosa com ele e o chamava de meu bichinho e disse que tinha levado a um veterinário para ele dar uma olhada nele, mas o veterinário disse que não fazia isso (caridade). Maria deu um beijo no bichinho que fechou seus olhinhos e, assim, levantou e foi embora com o telefone do IBAMA na mão.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Caso das Laranjas


Chegou aquele que nada queria, mas que também tudo queria. Ele tinha problemas no trabalho. No começo hesitou em contar sua história. Eu não sabia direito o que ele queria, mas sabia que não poderia resolver seu problema ali, pelo menos seu problema de fato. Começou dizendo sobre as laranjas. Trabalhava como segurança de frutas. Ele protegia a banana, protegia a melancia. Seria bonito se ele protegesse mesmo isso. Mas, na verdade, ele protegia uma empresa, empresa que nem carimbou direito sua carteira de trabalho que ele me mostrou sem eu pedir. Empresa que constava pagar 420 reais, sendo que o salário mínimo no Rio é de 510 reais. Ele me disse que a empresa pagava mais que aquilo na verdade, aquilo era só o que estava escrito. Interessante, né? Não tinha porte de segurança, era bastante humilde, dava para ver que ele tentava ao máximo falar bonito.
Então, o caso era o seguinte: outro suposto segurança de outra loja roubava as tais laranjas para chupar de café da manhã. Seria cômico, se não fosse ver a cara de desespero do segurança. Disse que não sabia mais o que fazer que já tinha falado com o gerente, com o dono da empresa e eles nada fariam. Então ele começou a querer falar algo, mas não saia. A primeira coisa que veio na minha cabeça é que ele tinha matado o cara. Mas não, ele disse se ele continuar assim terei que tomar outras medidas. Aí, parei de pensar que ele o matou e comecei a pensar que ele pensava em matar o cara. Mas não, ele disse que iria partir para a agressão física se o cara não parasse. Ele me contava tudo isso com esperança, nos seus olhos, de eu poder ajudá-lo.
Eu tentei. Disse para ele para tentar conversar com o cara. Mas ele disse que não tinha mais conversa. Falei para ele falar de novo com o dono da empresa. Ele disse que não faria mais isso. Então, sem mais argumentos disse para ele procurar a delegacia que ali a gente não poderia fazer nada por ele. E não poderia mesmo. Mas senti que ele estava um pouco satisfeito só de contar aquilo para mim.
É claro que isso não é uma grande história. Só achei interessante, pois eu não sei direito o que o segurança queria. Acho que ele queria só conversar como muitas outras pessoas que vão lá.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Defensora dos Incertos


“A onde o senhor reside?” eu perguntava. “Moro por aí, moro por aqui, moro aonde der para ficar, no canto, no sol, no frio, na chuva. Moro nas ruas da vida, moro na central”. Isso era comum de eu ouvir, não dessa maneira, mas todos queriam de uma forma ou de outra, dizer isso através de suas bocas desdentadas, com odor de álcool ou de quem não tomou café da manhã. Então, após escutar isso deveria preencher na ficha deles que residiam em local incerto.


Penso como me sentiria de morar em local incerto. Sempre quis ser mochileira, como muitos jovens, viajar o mundo, morar em vários lugares, conhecer tudo no mundo. Seria isso incerto? Talvez na minha mente antes de conhecer a miséria. Não, Local incerto na central quer dizer rua mesmo. Essa realidade me assustou. Pessoas sem documentos, pessoas que não são pessoas ainda ou não são mais pessoas no nosso Estado. Nosso Estado protetor. Nosso Estado protetor dele mesmo, sobretudo da continuidade do seu sistema.


Um dia me indaguei sobre por que não escrever o que ouço, o que eu vejo, por que não tentar encontrar uma válvula de escape para meus pensamentos se consolidarem? Primeiramente, não queria mostrar nada a ninguém, pois me acho meio inocente ainda, inexperiente, muito criança para poder indagar sobre o mundo e alguém querer me ouvir, ou poder de certo modo ensinar algo para alguém, pois é, para isso que deviam servir os livros. Como um assistido um dia me disse: “Na favela, eles lá colocam meninos de 20 anos para ensinar nós aqui de 50 anos e acham que aqueles com metade da nossa idade podem nós ensinar algo”. Acho que esse comentário tem certa veracidade por causa da falta de experiência de vida de um garoto de 20 anos, mas de outro acho que qualquer um pode aprender com qualquer um, como meu pai deve aprender comigo todos os dias e vice-versa.


Então, certo dia eu comecei a relatar o que pensava o dia todo, ou pelo menos tentar. Dias de dor de cabeça e inquietação. Conhecendo um outro mundo, aquele mundo que uma jovem de classe média alta não conheceria se não quisesse, se não tivesse vontade de saber, sem fome de realidade. Comecei à tomar dipirona no começo para aguentar a dor de cabeça. Tantos problemas que pensava nunca poderia saber que existiam. Tantos problemas que não sei direito por onde começar.


Acho melhor não começar pelos problemas, mas sim pelo que as pessoas pensavam que eu iria fazer por elas, na verdade, o que eu penso que elas pensavam. Muitas viam em mim uma luz, alguém que iria resolver o que eles queriam. Contavam tudo, coisas ilegais, coisas macabras, hediondas, coisas que só tinha ouvido falar em filme. Na verdade, eles não precisavam me contar algumas histórias, só precisariam ir direto ao ponto do que queriam, mas não, eles faziam questão de dizer tudo nos mínimos detalhes, sem vergonha, sem medo, com humildade, carinhosos ou grossos, e as vezes até sem pudor, tudo o que eu interessada ouvia, apesar de ficar com um olho lá fora vendo a fila de pessoas esperando atendimento só aumentar. Uns choravam, outros gritavam, uns eram mudos e outros não sabiam falar, isto é, se expressar direito.